Estupro em relacionamentos afetivos: precisamos falar

Adriana dos Santos Lima | 28/09/2018

A ideia deste post surgiu a partir de um caso bastante comentado nos últimos tempos através das redes sociais: o youtuber que em um vídeo para o seu canal relata um episódio em que teria forçado relações sexuais com sua ex-namorada de forma não consentida enquanto ela dormia. Logo depois, devido às repercussões desse vídeo, ele declarou em outro vídeo que a história não era verdadeira, e sim inventada.

Vale lembrar que segundo o artigo 2017-A do Código Penal Brasileiro, manter relações sexuais com pessoas que, por qualquer razão, não podem oferecer resistência, se enquadra como crime de estupro de vulnerável com pena de 8 a 30 anos de reclusão.

“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos;
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”

O que mais choca na história é a naturalização do estupro. Isso nos leva a acreditar que grande parte da população não tem consciência sobre o que de fato se configura um estupro. A crença de que os estupros são cometidos por desconhecidos em ruas escuras e desertas ainda é grande, e, além disso, a percepção que uma mulher pode ser violentada pelo seu próprio namorado/ex-namorado/marido/ex-marido ainda é difícil de se ter.

Cabe lembrar então a definição de estupro e violência sexual:

Segundo o artigo 213 do Código Penal Brasileiro é qualificado como estupro o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009);

De acordo com a Lei Maria da Penha - Capítulo II, artigo 70-III, violência sexual é “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.” (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006).

É fato que as pessoas, em sua maioria, ainda tem dificuldade de discernir o que é um estupro. Um estudo americano da Massachusetts Institute of Technology (MIT), realizado com estudantes universitários, demonstra isso. Nele, mostra-se que 17% das mulheres reportaram já ter vivido situações que configuram a definição de violência sexual/estupro (“comportamento sexual indesejado envolvendo uso da força, ameaça física ou incapacitação”). Porém, somente 11% das mulheres marcaram “sim” quando indagadas sobre já terem sido estupradas.

O Levantamento do Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência, traz um panorama dos crimes de violência doméstica e familiar contra mulheres. No estudo 15% das mulheres entrevistadas relataram já ter sofrido violência sexual. Apesar da pesquisa não se destinar ao estudo exclusivo de violência cometida por cônjuges, 74% das mulheres entrevistadas mencionaram o marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado ou ex-namorado como o agressor.

Além do mais, o levantamento feito, explicita o aumento do percentual de mulheres que declaram ter sofrido violência sexual (de 5% em 2011 para 15% em 2017). Entretanto, não podemos concluir que este aumento corresponda ao crescimento do número de casos. É possível que o aumento do percentual reflita o maior conhecimento/discernimento sobre o que se enquadra em violência sexual. Veja bem, nem sempre a violência sexual é acompanhada de força bruta de forma a obrigar a outra pessoa a manter relações, mas sim da força psicológica. Isso dificulta o discernimento da própria vítima sobre o estupro que sofreu. Por esse e outros motivos, muitas das vítimas só conseguem perceber/admitir que sofreram abusos sexuais de seu parceiro quando o relacionamento acaba.

O estupro dentro de relacionamentos amorosos ainda é pouco discutido, o que também contribui para a sua subnotificação. Porém, este vem sendo pauta cada vez mais frequente. Um curta francês, chamado Je Suis Ordinaire (“Eu sou Normal”, em tradução livre) exemplifica bem como se dá, geralmente, um estupro dentro de um relacionamento.

Dantas-Berger & Giffin nos dizem que “entende-se que este tipo de violência não será igualmente percebido ou vivido por toda mulher, ou seja, gênero se conjugará com outros elementos como idade, condições familiares, sociais, econômicas e culturais, sem existir um caráter universalizante, mas, sim, socialmente estruturado no modo como esses elementos se associam ou não em suas vidas.”

Então, um questionamento que surge eminente ao tratarmos deste tipo de crime é: qual o perfil das vítimas? É este ponto que tentaremos esclarecer no decorrer desse post.

Perfil das Vítimas segundo os Dados do SINAN

O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) nos fornece em seu banco de dados, dentre outras informações, o vínculo/grau de parentesco da vítima com o autor da violência. Com isso, vamos nos ater a análise dos casos nos quais as vítimas relataram que o seu agressor era o seu namorado, ex-namorado, cônjuge ou ex-cônjuge. (Para melhor leitura, ao longo do texto chamaremos os namorados, ex-namorados, cônjuges e ex-cônjuges de “companheiros” quando estivermos nos referindo a todas as categorias de forma agrupada).

De todas as notificações realizadas entre os anos de 2011 e 2016, nos quais a vítima era mulher, em 14% dos casos a autoria da agressão foi atribuída ao companheiro da vítima. A Figura 1 a seguir nos mostra a evolução do número de casos notificados ao longo dos anos de 2011 a 2016.

Podemos notar na Figura 1 que, em 2016 por exemplo, foram notificados 3010 casos nos quais o agressor era seu companheiro, isso representa cerca de 8 casos notificados por dia. Além disso, houve um aumento significativo no número de casos (o aumento total chegou a 134%). Contudo, como dito anteriormente há fortes motivos para se acreditar que esse aumento não é proveniente somente do crescimento do número de casos em si, mas também do aumento de mulheres que notificaram o crime.

Notamos também que, ao longo dos anos estudados, a maior parte das notificações, o companheiro era o namorado da vítima (variando de 45% a 51% das notificações estudadas). Em seguida, vêm os casos nos quais o agressor era o cônjuge, representando de 29% a 31% das notificações.

Idade das Vítimas

Uma característica importante a ser analisada é a idade das vítimas. A Figura 2 mostra a distribuição da idade das vítimas de estupro cujo agressor foi seu companheiro, ao longo de todos os anos estudados.

A Figura revela uma grande concentração de casos em meninas, com o número de ocorrências decrescendo com o aumento da idade da vítima. Veja que há um pico na idade de 13 anos. Uma interpretação bastante preocupante que pode ser feita nos mostra que 50% das mulheres vítimas de estupro por seu companheiro tem menos de 14 anos. Para melhor entender como se dá a relação do agressor com a vítima, a Tabela 1 vem mostrar o número de casos fazendo uma ligação da faixa etária da vítima (coluna) e de seu agressor (linha). (As idades que compõem cada faixa etária está explicitada nas observações ao final do post.)

Table 1: Tabela 1: Número e Porcentagem de Notificações de Estupros em Mulheres cujo Agressor era seu Companheiro, segregados por Faixa Etária da Vítima e do Agressor. (fonte: VIVA/SVS/MS).
Adolescente Jovem Adulta Idosa
Criança 21 (0.84%) 1 (0,43%) 11 (0,72%) 0 (0,00%)
Adolescente 1035 (41,24%) 4 (1,73%) 9 (0,59%) 0 (0,00%)
Jovem 836 (33,31%) 65 (28,14%) 86 (5,61%) 2 (2,94%)
Adulto 608 (24,22%) 160 (69,26%) 1387 (90,42%) 33 (48,53%)
Idoso 10 (0,40%) 1 (0,43%) 41 (2,67%) 33 (48,53%)

Através da Tabela 1 podemos perceber que 41% das adolescentes foram violentadas por outros adolescentes e 33% delas, por jovens. Por sua vez, as mulheres jovens, tiveram o agressor considerado adulto em 69% dos casos. Já para as mulheres adultas, os companheiros eram predominantemente adultos (90% dos casos). Quando a vítima era idosa, os agressores eram tanto adultos quanto idosos (ambos com 48% dos casos, cada).

Escolaridade das Vítimas

Considerando o fato que a grande maioria dos casos são de meninas com baixa idade, esses casos poderiam viesar a análise de escolaridade, já que elas só poderiam estar cursando o Ensino Fundamental. Com isso, a análise será feita com aquelas que tinham mais de 18 anos, já quenestas poderiam/deveriam ter concluído o Ensino Médio.

Table 2: Tabela 2: Porcentagem de Casos segundo a Escolaridade da Vítima para as Maiores de Idade, de 2011 a 2016 (fonte: VIVA/SVS/MS).
Analfabeta Ens. Fundamental Ens. Médio Ens. Superior
Total (%) 2,6 49 36 12

Das vítimas maiores de idade, percebemos um grande percentual de mulheres que tinham estudado até Ensino Fundamental (49,20%), e em seguida, com Ensino Médio (35,78%).

Relação da Região de Residência com a Idade da Vítima

Dos dados analisados, 27,37% das vítimas residiam na Região Norte; 22,33% na Região Nordeste; 25,44% na Região Sudeste; 16,37% na Região Sul; e 8,50% na Região Centro-Oeste.

A Figura 3 a seguir mostra o número e aporcentagem de notificações por região, segundo a faixa etária da vítima.

Vemos, então, uma clara diferença entre as regiões do Brasil. A Região Norte se destaca por ter em torno de 90% de suas notificações vinda de adolescentes. Já na Região Sudeste, em mais de 50% dos casos a vítima é adulta.

O comportamento tão distinto entre as regiões nos faz refletir sobre os aspectos culturais intrínsecos que moldam desde a ocorrência desse crime, quanto a procura das vítimas por auxílio (e consequentemente a notificação do crime).

Esses dados um tanto inesperados levantam o questionamento: será que esses dados realmente refletem a realidade? O quão subnotificado esses dados estão? E o quanto essa subnotificação está refletindo nas nossas análises?

Sabemos que a sociedade patriarcal em que vivemos por muito tempo “consentiu” com a violência para com a mulher, onde a dependência financeira e a submissão fez com que as mulheres achassem normal ter atribuído dentre seus “deveres conjugais” satisfazer o marido. Até o ano de 2003, por exemplo, um homem podia se divorciar de sua esposa por justa causa, alegando “dívidas conjugais”. Esta é uma das hipóteses para o baixo número de pessoas adultas e idosas que reportaram o crime.

Temos que destacar a importância de orientar os jovens e adolescentes a como identificar os sinais de abuso, além de salientar a obrigatoriedade do CONSENTIMENTO nas relações sexuais.

Sexo sem consentimento é estupro, sim.

Forçar relações sexuais por meio de “convencimento”, também.

É importante notificar os casos de estupro (opções: ligue 180 ou ir ao centro de saúde mais próximo).

Observações:

  • Os dados de 2015 e 2016 não estão consolidados;

  • Ao longo dos anos, foram eliminados, em média, 1,6% dos dados por inconsistência de informações;

  • Vale ressaltar aqui, que a variável que nos indica a faixa etária do agressor apresentava muito valores faltantes;

  • A faixa etária, em anos, é dividida de tal maneira: (0,9] criança ; (9;19] adolescente ; (19,24] jovem ; (24,59] adulto ; >59 idoso.

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