Juliana Freitas | 18/05/2018
O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) fornece, dentre outras informações, dados de notificações ou registros de casos de estupro em todo o Brasil. A partir desses dados, focaremos nos casos cujas vítimas eram mulheres, pois como visto no post Por que estudar o estupro em mulheres?, esses são os casos mais frequentes.
Um simples gráfico (Figura 1) com o número total de casos de estupro em mulheres notificados em cada ano, mostra que tem havido mais notificações; contudo, levando em consideração a enorme porcentagem de casos subnotificados (ler Dados oficiais de estupro no Brasil: a questão da subnotificação), não podemos afirmar nada sobre o padrão do número de ocorrências.
Tendo isso em mente, esse post tem por objetivo mostrar alguns pontos que podem contribuir para o problema da subnotificação dos registros de estupro em mulheres, focando em aspectos relacionados as três possíveis localizações de cada crime: municípios de notificação, de ocorrência e de residência.
Dentro dos municípios
A Tabela 1 mostra o total e a porcentagem de municípios com pelo menos uma notificação no ano, no período de 2011 a 2016. Verificamos que essa quantidade também está aumentando; porém, em 2016 apenas 28.87% deles possuíam ao menos uma notificação. O que será então que está havendo em 71.13% dos municípios para que não haja nenhuma notificação - será que não há nenhum caso? Será que há casos e estes são notificados em outros municípios? Se sim, por quê? Ou será que os casos não estão sendo notificados?
2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | |
---|---|---|---|---|---|---|
Total (%) | 905 (16.25%) | 1188 (21.33%) | 1448 (26.00%) | 1496 (26.86%) | 1547 (27.77%) | 1608 (28.87%) |
Um ponto aqui levantado para tentar explicar uma parte desse problema, é entender como se dá dinâmica do local de residência, de ocorrência e de notificação de cada crime registrado. Para isso foi feito um Diagrama de Venn para cada ano; assim, conseguimos ver as uniões e interseções de cada conjunto de localizações.
A partir dos diagramas abaixo, pudemos verificar que em pouco mais da metade dos casos notificados/registrados de 2011 a 2016, essas três localizações foram iguais. No entanto, considerando as comparações 2 a 2 (ou seja, notificação x ocorrência, notificação x residência e ocorrência x residência), vimos que em geral há uma certa similaridade entre os municípios de ocorrência e residência; e certa diferença com relação ao município de notificação. Essas ideias estão melhor explicadas nos tópicos que seguem:
a porcentagem de casos nos quais apenas os municípios de notificação e ocorrência eram iguais (e ambos diferentes do município de residência) foi baixa, variando ao longo dos anos de 2011 a 2016, de 1.9% a 2.2%;
em relação aos municípios de notificação x residência, vimos que a porcentagem de casos em que essas localizações coincidiam (e diferiam do município de ocorrência) também apresentou valores baixos, variando de 3.5% a 4.3%;
por outro lado, uma quantidade bastante razoável dos casos registrados (de 14.6% a 16.4%) possuíam os municípios de ocorrência e residência iguais (ambos sendo diferentes do município de notificação);
de 16% a 17.7% dos casos registrados, o município de notificação era diferente dos demais (do de ocorrência e de residência); enquanto que de 5.1% a 5.8% tinham o município de ocorrência diferindo das demais localizações; e de 3.3% a 3.6% dos casos possuíam município de residência diferente dos outros.
(observação: esse cálculo levou em consideração somente as notificações que possuíam todas as localizações registradas.)
Isso leva a crer que, considerando os dados registrados, os casos de estupro em mulheres ocorrem no município de residência, e que uma parte razoável das vítimas se sente mais encorajada a notificar num município diferente dos de residência e ocorrência.
Não obstante a isso, pudemos ver (Tabela 2) que em todos os casos notificados havia a informação local de notificação, como se era esperado. Havia também a informação do local de residência para praticamente todos os casos. Porém, em 2011, quase 9% dos casos notificados a informação local de ocorrência estava em branco (pergunta-se: por qual motivo?). Notou-se também que essa porcentagem foi diminuindo ao longo dos anos, o que indica uma melhora no procedimento dos registros desse crime.
2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | |
---|---|---|---|---|---|---|
Local de notificação | 0 (0%) | 0 (0%) | 0 (0%) | 0 (0%) | 0 (0%) | 0 (0%) |
Local de ocorrência | 923 (8.63%) | 1269 (8.89%) | 1202 (7.08%) | 762 (4.26%) | 121 (0.66%) | 44 (0.21%) |
Local de residência | 4 (0.04%) | 7 (0.05%) | 5 (0.03%) | 11 (0.06%) | 7 (0.04%) | 8 (0.04%) |
Por fim, buscamos argumentos em notícias para tentar respaldar a linha de pensamento exposta acima: várias vítimas relatam dificuldades no momento da notificação. O medo devido a ameaças do agressor e/ou receio de retaliação5,7, imensa demora no andamento dos processos5, sensação de impunidade para com os agressores7, o fato de terem que se deslocar distâncias razoáveis para notificar1. Muitas vítimas são encorajadas a não completar a ficha de notificação dentros dos estabelecimetos2. Além disso, há um processo de culpabilização da vítima em várias etapas do processo de notificação2,3,4,5,6,7. Sendo assim, destacamos que há uma grande responsabilidade das próprias instituições com relação ao montante de casos subnotificados.
Com isso, fica claro que, dos diversos fatores que levam à vítima a não notificar o crime de estupro, alguns podem ser resolvidos diretamente ao fornecer um local seguro e com treinamento de profissionais para o investigar o caso de forma adequada.
** É importante notificar os casos de estupro (opções: ligar 180 ou ir ao centro de saúde mais próximo).
- Observação: os dados de 2015 e 2016 não estão consolidados.
Referências:
1 Maioria das vítimas de estupro em AL não procura por atendimento médico
2 “A vítima de estupro já chega na delegacia com culpa”
3 Casos aumentam, mas estupro ainda é crime subnotificado
4 “A cultura do estupro faz a culpa ser transferida do agressor para a vítima”
5 “Parte da impunidade no crime sexual começa antes de chegar à Justiça”